domingo, 15 de abril de 2012

Dez mil metros obstáculos


SEXO! Esta estória não tem nada a ver com ele. Tem a ver com lâmpadas incandescentes, fios de nylon e serapilheira.
Mr. White corria pela rua. Haviam-lhe roubado a carteira, e o ladrão corria atrás dele para lha devolver. Arrependera-se e temia a ira de Osíris. White corria como se fosse jovem outra vez. Era o primeiro assalto que sofria em anos, e a ideia de passar a noite ao relento, sem comida e ser forma de voltar a casa, encantava-o. No caminho desfizera-se do telefone, das chaves de casa e dos bilhetes de metro, que o ladrão apanhara e guardara cuidadosamente, numa bolsa de veludo vermelho. Ao fim de dois longos minutos de perseguição, que mais pareceram três, White pára perante um beco sem saída e, confrontado com a bolsa vermelha grita: “Não!! Não!! Por favor!! Tudo menos isso!! Tudo!!!” e de repente, ao contrario do normal, aparecem meia dúzia de policias que se atiraram ao ladrão e o algemam, a custo. Revistam-no e transferem o conteúdo da bolsa vermelha para os seus bolsos. Caminhando para o pôr-do-sol despedem-se: “Caro cidadão, tenho a informar que foi salvo. Pode ir à sua vida.”. E estas palavras catárticas inundam-no de esperança, enche o peito de ar e sorri. Na confusão o ladrão deixara cair a sua própria carteira, chaves de casa e um boné, amarelo canário deslavado, com uns toques de cor-de-rosa. Desfolhou a carteira. Tinha o cartão de uma biblioteca, com uma morada nos dados pessoais. Chamava-se Brown. Brown ajeitou o seu boné amarelo, com uns toques de cor-de-rosa, pôs a carteira no bolso e caminhou para casa, balançando as chaves no indicador direito.
Não era longe, em pouco mais de três dias chegou ao seu destino. Teriam sido 15min, se não tivesse adormecido no metro. Era um edifício alto, velho, com a fachada coberta de grafitis renascentistas. Subiu até ao 3º andar e entrou no apartamento. Era pequeno, muito pequeno. Tinha um colchão encostado a uma parede, uma caixa de cartão como mesa de cabeceira, uma grande janela com uma alegria-da-casa no parapeito e, num canto, um urso pardo a comer um cobertor. Fitaram-se durante algumas horas, depois decidiram ir dormir.
Na manhã seguinte Brown acordou sem ter dormido. Fazia frio à noite. O urso pardo, sentado no seu canto, olhava para ele como quem diz: “É um pequeno-almoço continental por favor, mas com anchovas nos corn flakes.”. Brown pegou no boné e saiu em busca de uma refeição para o seu novo senhorio. Vasculhou a carteira, mas não tinha dinheiro. Tentou comprar um pão com uma nota desenhada a lápis de cera na parte de trás de um jornal, mas o padeiro, ainda que vesgo, percebeu e atirou-lhe com a balança, que lhe tocou a córnea de raspão. Então, mais à frente, pegou num arenque, pô-lo no bolso de dentro do casaco e caminhou até casa, com o melhor ar despercebido que sabia, trauteando “Twinkle twinkle little star” em alemão enquanto saltitava à lá River Dance. Uma vez em casa, alimentou o urso pardo, que se mostrou satisfeito. Chamava-lhe agora Dorothy. Fez uma açorda com as espinhas do arenque e uma carcaça que roubara ao padeiro e sentou-se a comer com Dorothy.
Agora, ia todos os dias ao mercado roubar um peixe e comprar uma carcaça com notas do monopólio (depois de várias tentativas, e várias balanças na córnea, tinha encontrado o único substituto válido para o dinheiro na padaria do vesgo). Dorothy parecia gostar desta rotina e recompensava-o fazendo as vezes do cobertor que comera. Um dia, ao voltar do mercado, Brown é abordado por duas testemunhas de Jeová, com uma tremenda e assoberbante vontade de espalhar a palavra. Ele não percebia porque é que de tantas palavras alguém haveria de querer espalhar só uma, e o seu erro foi perguntar. O sol pôs-se duas vezes e a discussão prosseguiu e Brown com um linguado no bolso de dentro do casaco. Foi então que se lembrou das aulas de história e de ler que as testemunhas de Jeová são como os robôs e explodem quando confrontados com um paradoxo. Olhou-os nos olhos e gritou bem alto: “Pode um Homem afogar-se na fonte da vida eterna?” e as suas cabeças começaram a girar até saírem disparadas pelo ar, num grandioso festival de fogo de artifício, que nem bolo de aniversário na escola primária.
Brown apressou-se a chegar a casa, onde Dorothy se atirou a ele e devorou o linguado ainda no seu bolso. Agora que pensava nisso devia ter voltado ao mercado a roubar um peixe fresco, mas já era tarde. Na manhã seguinte Dorothy estava doente, rebolava com dores e cantava o reportório completo de “Cats” em loop. Era grave. Então Brown partiu para o mercado. Ia trazer-lhe do melhor! Um tamboril, chá de camomila e remédio para os ouvidos! Mas ao voltar teve uma surpresa. Os vizinhos, uma ciclista reformada e um homem vestido de pato, tinham denunciado abusos de um urso menor aos serviços sociais, que enviaram dois gorilas e uma senhora de capachinho para levarem Dorothy para um orfanato. Transtornado, bombardeou-os com pedaços de tamboril, remédio para os ouvidos e folhas de camomila, em vão. Dorothy foi levada para uma Ford Transit e seguiu rua fora. Gritando desesperado e enlouquecido, Brown atirou-se pela janela e partiu as duas pernas, o que não era grande problema pois costumava andar em pino. Levantou-se, trocou o boné amarelo por um fato cor-de-rosa e tornou-se vendedor de seguros. Chamava-se Dorothy.
Dorothy chegou a ser o maior vendedor de seguros da região, mas deitou tudo a perder quando decidiu criar um seguro contra testemunhas de Jeová. Ainda hoje é perseguido por pessoas aos pares.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

A hipótese mais simples é normalmente a mais viável

 
 Há quem tenha um olho de cada cor: um verde e um castanho, um castanho e um azul, um verde e um cinzento, um azul e um de vidro... Jim Stevens tinha uma orelha de cada cor. E nenhuma que combinasse com o seu tom de pele. Uma era púrpura e a outra cor de mostarda. Tinha sido assim desde sempre, desde que se lembrava, pelo menos. Em criança era gozado por todas as outras crianças, e inclusive alguns adultos: " Eh eh, olha...hm, olha... o miúdo que tem uma orelha púrpura e outra cor de mostarda!" - ao que Stevens não conseguia deixar de responder na sua cabeça: "Está bem, e agora? Queres uma bolacha?".
  Porém tudo mudou quando entrou para a universidade. Era simplesmente excêntrico. Houve até uma altura em que se tornou moda, e toda a gente no campus queria ter as orelhas às cores. Acabou por ser proibida pela reitoria (em vão), já que os estudantes tentavam tingir as cartilagens com os líquidos coloridos do laboratório de química, alegando que a única alternativa eram os lápis de cera, e que esses não duravam mais de 2h. Houve mesmo um aluno particularmente dotado, Ron Johnson, que tentou imprimir a cor desejada nos abanicos laterais da sua cabeça. Literalmente. Ron, sem que o professor de física avançada o consiga ainda hoje explicar, arranjou forma de enfiar o crânio na impressora da biblioteca. Um erro no cálculo do ângulo de inserção fez com que não as orelhas mas os dentes de Ron fossem impressos de um, pouco agradável, cinza azulado (a sua sensibilidade para as cores também não era a melhor). No campus o acontecimento foi marcado de grandes festejos, gargalhadas e garrafas sem carica. Porém, receando sermões e punições paternais, Ron catapultou em trambolhões sonoros que se tratava de escorbuto, e acabou por ser internado num centro de reabilitação para marinheiros, nos dois semestres seguintes.
  Enquanto isto, Jim era o centro das atenções, conseguia manter o que todos os outros nem conseguiam atingir. Tinha filas de raparigas à porta do seu dormitório, todos queriam conhecer o Jim Stevens. Ia a todas as festas, comia e bebia sem pagar, A universidade foi a melhor altura da sua vida. Pelo menos até a moda passar, quando apareceu um caloiro com uma t-shirt amarela. Jim passou a andar de gorro e lembrou-se que tinha um curso para fazer. Tinham passados 10 anos e chumbara a todas as cadeiras.
  Anos mais tarde não conseguia arranjar emprego. As suas orelhas eram um problema e a maior parte dos empregadores não aceitavam que usasse o seu gorro de lã grossa cor-de-laranja nas horas de expediente. Um dia, aproveitando a ida ao mecânico por causa do seu dispensador de Pez que ficara encravado, Jim indagou se haveria resposta ao seu problema. Peter Peterson, o mecânico, levou-o para uma salinha, pequena, rectangular, totalmente branca. De repente, com um estalido, abrem-se simultaneamente pequenas janelas quadradas, negras no interior, ao longo das duas paredes laterais. Ouvem-se gritos. Altos e agudos. Cá fora Peterson sorri furtivamente enquanto passeia os dedos pelas teclas do piano imaginário que está pousado em cima da sua secretária, Miss Taylor, uma jovem tímida e atraente, mas não demasiado. Alguns minutos depois os gritos param. Instala-se um silêncio mórbido. Perterson levanta-se, fecha a tampa do piano imaginário e dirige-se à sala. Ao projectar a mão em direcção à maçaneta esta roda, Peterson dá um passo atrás. A porta começa a entreabrir-se mostrando uma linha de luz branca, intensa, que vai aumentando. Peterson recua lentamente, enquanto lentamente a porta se abre. Ergue o olhar e eis que salta diante dele um Jim Stevens sorridente de olhos esbugalhados. Projecta-se sobre peterson e abraça-o. Este abraça-o de volta e trocam palmadas fortes nas costas um do outro, enquanto riem cada vez mais alto. Jim está livre do seu problema. As suas orelhas não são mais de cores diferentes que não combinam com o seu tom de pele. Agora o lado esquerdo de Jim é todo ele completamente púrpura e o lado direito completamente cor de mostarda. As suas orelhas não voltarão a ser um problema.
  Radiante, Jim Stevens agradece a Peterson, paga-lhe o devido e este devolve-lhe a factura. Quanto ao dispensador de Pez, foi inevitavelmente para a sucata, não tinha arranjo.

Na dúvida vire à direita

 
John Doe estava em frente ao espelho a praticar expressões. Há mais de duas horas, agora que penso nisso. Era o aniversário da sua mãe, Jane Doe, com quem mantinha uma relação conflituosa, talvez por esta o ter deixado sozinho no supermercado em criança, durante três semanas, alegando que se esquecera de um estufado de peixe-balão ao lume, e que só o tinha conseguido largar quando chegou à combinação perfeita de condimentos e ervas selvagens (a mesma que usava a sua bisavó Hanna Doe, mas que Jane nunca chegara a provar). Ou, por outro lado, poderia ser o facto de sabotar todas as relações de John, afirmando que este possuía um variado número de doenças venéreas.
- Elas não são suficientemente boas para ti meu filho! Nunca nenhuma será suficientemente boa para ti... Queres uma maçã?
Como se Jane se preocupasse minimamente com ele...
  E ali estava, a viver na casa dos 40, com uma renda demasiado alta, devo dizer, a praticar expressões em frente ao espelho há três horas. Dava tudo para não ter de ir à idiota festa de aniversário onde nem a mãe, nem a família ou o resto dos convidados nutriam o mínimo afecto por ele. De facto, a sua presença parecia sempre originar uma onda de limpezas de garganta e estrabismo, para não falar do sarcasmo insultuosamente gratuito. Como se o seu emprego como estafeta na pizzaria local tivesse piada. Ou como se a sua bicicleta e farda vermelha e amarela, com boné a condizer, fosse algo de absurdamente hilariante.
- Está a ficar tarde, é melhor ir-me vestir... Mas talvez fique mais um pouco, o meu riso indiferente e auto-confiante ainda precisa de uns retoques... Ah e ainda não treinei os dois beijinhos de parabéns, o sorriso parvo e a voz melosa para a mãe... e tem de parecer real... Vou chegar atrasado, o que significa que preciso de praticar o discurso rotineiro e estou-me-nas-tintas para quando todos os olhos da sala se precipitarem sobre as minhas sobrancelhas, como grifos à carcaça de carneiro putrefacta e parcialmente mutilada.
(toca a campainha)
 John destranca a porta e entreabre-a. Um homem baixo, com o corpo tão redondo quanto a sua cabeça careca, erguia-se à sua porta, vestido com um macacão em tempos azul-ultramarino. Segurava a seu lado várias paletes empilhadas numa daquelas estruturas de metal com duas rodas. O estampado branco no bolso direito do peito denunciava-lhe a identidade: Ray.
- Bom dia, é para reabastecer a vending machine.
- Ah, sim, bom dia hum... Ray, que aconteceu ao Edmund?
- Está de baixa, partiu uma perna durante uma entrega de rolos de polvo vivo, os tentáculos do bicho enrolaram-se-lhe à volta e o pobre coitado caiu com o nariz direito no chão.
- Mas... pensei que tivesse partido a perna...
- Sim, isso foi depois, quando os paramédicos pousaram os "Jaws of life" em cima dele.
- Chato...
- Sim...
- Bem, é por aqui...
 Ray leva a mão ao bolso e abre a vending machine com a sua chave mestra. Começa então a repor o stock: rolos de salmão, camarão, atum, vegetarianos, com ou sem ovas, bolos de arroz... John espreita curioso.
- Vai demorar? é que já estou atrasado...
- Não não, mais uns minutos. Não o roubo dos seus compromissos...
- Óptimo. Se bem que parte de mim espera que ocorra um qualquer erro técnico impossível de resolver em menos de 24h, que me obrigue a ficar por aqui...
- Ah, percebo-o bem.
- Nunca tinha reparado como é espaçoso isto lá dentro...
- E nem lhe ocupa muito espaço na cozinha...
- Hm, ouça, Ray... Quando é a sua próxima ronda por estes lados?
- Quinta-feira.
- Hm, isso são seis dias... Ray, gostava de lhe pedir um favor... Não feche a porta, acho que vou refrescar as ideias.
- Com certeza, desde que possa ficar com os trocos da recolha.
- Não o faria de outra forma.
- Mas, amigo, não me vai convidar a entrar?
- Ah, claro que sim, esteja à vontade! Onde deixei as minhas maneiras...? Talvez no porta-luvas... Mas diga-me, que pensa da teoria Kantiana da faculdade do juízo?
- Ah, vejo que sabe receber os seus convidados... Bem, para começar acho que depende dos olhos, inteiramente dos olhos...
- Bem apontado! Dos olhos e de onde vêm agarrados, se bem que por vezes parece que é a um pedaço de humus.
E então ficaram os dois dentro da vending machine de sushi, argumentando alegremente até quinta-feira, altura em que alegaram uma confusão no atraso da hora para se safarem das acusações judiciais.

Comprar: roupão turco


Tenho grande parte das minhas ideias enquanto tomo banho. Perco-me no chuveiro, e às vezes quando dou conta já estou em Moscavide. Não deixa de ser chato perceber-se que se está de toalha no meio de prédios verde-mato com estofos em pele. O mais complicado é regressar. Nunca pensei ser tão difícil apanha um táxi com espuma no cabelo. Tamanho preconceito. Só os camionistas são compreensivos, e as velhinhas com cataratas, ainda que a maior parte das vezes me deixem no sítio errado. Ah, e os distribuidores de alicates ao domicílio. Impecáveis. O único problema é ser muito demorado, há muitas chamadas de emergência. São muitas paragens e ziguezagues até me deixarem em casa. Quando chego finalmente percebo que não sei que dia é, não sei quanto tempo estive fora, se tinha compromissos, se me despediram, se me despejaram, se deixei morrer o meu cão, se me declararam o óbito... Entro em neurose, falta-se-me o fôlego. Então para me acalmar decido tomar um banho.